Portugal: biodiversidade em chamas *

Sandra Rocha**

 

A Europa mediterrânea, com 10,000 espécies, tem uma maior diversidade vegetal que qualquer outra região de Europa. Localizado nessa área privilegiada e apesar da sua reduzida dimensão, Portugal possui 43% da fauna de vertebrados terrestres europeus, é o quarto pais europeu com maior número de endemismos vegetais e o terceiro em espécies ameaçadas. Cerca de 75% do país faz parte dos 1,4% da Terra considerados necessários para salvaguardar 44% das Traqueófitas e 35% dos vertebrados a nível mundial.

@ Direcção-Geral das Florestas

Mapa @ Direcção-Geral das Florestas

A floresta faz parte desse rico património ambiental, social, histórico e económico, embora apenas 22% do território faça parte de áreas protegidas ou classificadas pelo Instituto de Conservação da Natureza (ICN).

Em Portugal considera-se que a área ocupada por floresta seja de cerca de 3,4 milhões de hectares (cerca de 38% do território), uma importante fonte de recursos naturais renováveis. Associados à floresta estão muitos milhares de postos de trabalho, pelo que pode ser igualmente considerada fundamental na economia do país. 

As regiões de clima mediterrânico, com os seus Invernos amenos e húmidos e Verões quentes e secos, estiveram, em tempos, cobertas por florestas compostas essencialmente por carvalho Quercus robur, castanheiro Castanea sativa, sobreiro Quercus suber, azinheira Quercus rotundifolia, medronheiro Arbustus unedo e oliveira Olea europaea sativa

Este tipo de floresta alberga uma enorme diversidade de animais, alguns deles únicos da Península Ibérica, como as espécies de salamandra Salamandra salamandra galaica e Chioglossa lusitanica, e o criticamente ameaçado lince Lynx pardina

Mas há muito que este ambiente degenerou em matagal (maquis) ou charneca (garrigue), em resultado da actividade humana e da pastorícia. Dessas áreas restam hoje em dia não florestas, mas manchas florestais pois a sua reduzida dimensão não permite essa designação. Do coberto vegetal primitivo português resta, quase miraculosamente intocada, a Mata do Solitário na Arrábida. 

No decorrer do século XX a floresta portuguesa foi profundamente alterada. No início do século foi vastamente disseminado pelo país o pinheiro bravo Pinus pinaster (actualmente, compondo cerca de 31% da floresta) e, mais tarde, introduzido o eucalipto branco Eucalyptus globulus (que actualmente corresponde a 21% da floresta e a aumentar rapidamente). 

O pinheiro bravo é muito pouco exigente a nível dos solos, podendo ser plantado em solos pobres, tanto calcários como arenosos e é amplamente usado na industria da construção, pasta de papel e produção de resina. 

O pinhal, no entanto, apresenta uma reduzida biodiversidade, quando comparado com a floresta nativa, devido à falta de arbustos e plantas menores, que forneceriam abrigo e alimento aos animais. Isto acontece devido à constante limpeza da floresta feita pelo Homem e pela natureza ácida do solo. 

O solo do pinhal torna-se cada vez mais ácido e pobre devido ao baixo valor nutritivo das agulhas e à sua baixa taxa de decomposição. Outro factor de empobrecimento dos solos do pinhal é a apanha de cogumelos, que impede tanto a sua associação com as raízes, como a decomposição da matéria orgânica.

Proveniente da Austrália e Tasmânia, o eucalipto tem vindo a ganhar terreno relativamente às espécies nativas e ao pinheiro, pois desenvolve-se rapidamente e tem elevada capacidade de regeneração. 

Inicialmente foi plantado em terrenos pantanosos, que ajudava a drenar com a sua elevada capacidade de absorção radicular. No entanto, em breve foi visto como potencialmente lucrativo para a industria do papel e passou a ser plantado em terrenos com boas potencialidades agrícolas, que foram assim degradados.

Os eucaliptais são igualmente pobres em biodiversidade, como comprovou um estudo que identificou apenas 100 casais de aves reprodutoras/Km2, em vez dos 700, ou mais, usuais na floresta nativa. Neste caso, as razões dessa pobreza são a elevada taxa de crescimento das árvores (que são de seguida cortadas), não permitindo que uma comunidade biológica rica e estável se instale, bem como a falta de nutrientes e abrigo para os animais. 

Nas zonas de clima mediterrânico o fogo é um factor ecologicamente importante, sendo alimentado pelas substâncias voláteis que as plantas produzem. Nestas zonas os fogos ocorrem com intervalos curtos (inferiores a 20 anos), mas têm pouco impacto na composição das comunidades vegetais porque estas são dominadas por plantas tolerantes ao fogo e, em alguns casos, com crescimento estimulado pelo calor. 

A resistência das plantas ao fogo resulta da tolerância dos tecidos ao calor e/ou da sua elevada humidade foliar. Algumas espécies apresentam cascas resistentes (sobreiro, por exemplo), ou gemas protegidas, que lhes permitem reconstituir rapidamente a copa danificada pelo fogo. A regeneração das plantas herbáceas após o fogo é assegurada por estruturas de reprodução vegetativa subterrâneas (como rizomas, tubérculos ou bolbos) ou sementes. 

As alterações introduzidas na floresta alteraram este equilíbrio, pois tanto o pinheiro como o eucalipto são árvores altamente combustíveis, com madeiras resinosas e oleaginosas ricas em hidrocarbonetos e álcoois, causando incêndios onde se atingem temperaturas extremamente elevadas e em que as plantas são totalmente consumidas. Este tipo de incêndio danifica, inclusivé, as camadas superficiais do solo, queimando os seus componentes orgânicos e causando erosão.

No pinhal pouco cuidado, como acontece em muitas regiões do interior de Portugal, as agulhas que caem ficam presas nos arbustos, facilitando o caminho do fogo em direcção às copas e originando fogos de temperaturas elevadas, quase impossíveis de dominar. Pelo contrário, num carvalhal, as folhas largas que caem no chão retêm humidade enquanto se decompõem, devolvendo nutrientes ao solo. Não existem espaços arejados entre elas, impedindo o fogo de atingir temperaturas elevadas e danificar a copa das árvores.

Note-se a coincidência de localização da maioria das ocorrências de fogo com o tipo de coberto vegetal da zona nos mapas seguintes. 

@ Direcção-Geral das Florestas @ Direcção-Geral das Florestas

(Mapas @ Direcção-Geral das Florestas)

Estudos mostram, no entanto, que a área total de floresta no país não se tem alterado grandemente pois está a ocorrer uma substituição do pinhal pelo eucaliptal, não uma reflorestação com as espécies nativas. Deste modo, a diversidade florestal (e com ela a da fauna) está a ser destruída sistematicamente, com as consequências biológicas óbvias e maximizando o risco de grandes incêndios.

É sabido que grande percentagem da área ardida se deve à existência de grandes incêndios, não de muitos pequenos fogachos. Em 2002, 68% da área ardida resultou de 213 grandes incêndios, ou seja, apenas 0,8% do número total das ocorrências mas causaram prejuízos de mais de 24 milhões de euros. Os prejuízos em material lenhoso destes incêndios ascendem a 56 milhões de euros, nos quais não se incluem os custos de combate e reflorestação, bem como custos indirectos de difícil contabilização.

Os incêndios em larga escala contribuem ainda para a emissão de CO2 para a atmosfera (cerca de 10 a 30% por ano). Este é um dos principais gases de estufa envolvido no aquecimento global do planeta. Por outro lado, as florestas em crescimento removem o CO2 da atmosfera, fixando-o nas árvores e no solo.

Estes grandes incêndios propagam-se rapidamente devido às monoculturas de pinheiro bravo para madeira e eucalipto para pasta de papel, comuns em locais pouco adequados à agricultura normal (encostas pouco acessíveis, por exemplo). As florestas de espécies nativas ou mistas são nitidamente menos susceptíveis ao fogo, um importante argumento a favor da recuperação da biodiversidade desses espaços. 

 

* publicado em inglês no site da organização Greenpeace

** Bióloga e professora de Biologia na Escola Secundária de Amora, Seixal

 

Para saber mais: Referências
Direcção-Geral das Florestas 

European Center for Nature Conservation

Instituto de Conservação da Natureza    

Liga para a Protecção da Natureza    

Quercus

Amabis, J.M. et al, Biologia, Editora Moderna, São Paulo, 1997

Correia, Clara Pinto et al, Portugal Animal, Círculo de Leitores/Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991

Determinação das causas dos incêndios florestais em 2002

Direcção-Geral das Florestas

Instituto de Conservação da Natureza

Inventário Florestal Nacional

Naturlink

Pena, António et al, Roteiros da Natureza, Temas e Debates, Lisboa, 1996

Quercus

Raven, P.H. et al, Biologia vegetal 5ªedição, Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1996

Relatório Final sobre os incêndios florestais em 2002

Relatório Provisório sobre os incêndios florestais em 2003

Vários, Portugal Natural, Edideco, Lisboa, 1995

Terence P. Dawson, Natalie Butt and Florence Miller, The Ecology of Forest Fires, 2001

 

 

 

Portugal: biodiversidade em chamas II, a encruzilhada

Sandra Rocha**

 

Comum em toda a Península Ibérica até meados do século XIX, o lince Ibérico Lynx pardinus é actualmente o carnívoro mais ameaçado da Europa e o mamífero mais ameaçado do mundo.

O lince Ibérico ocorre na floresta e mata mediterrânica, preferindo uma mistura de arbustos densos e árvores que lhe fornecem abrigo, e pastagem aberta onde pode caçar o coelho bravo Oryctolagus cuniculus, a sua presa principal. O coelho bravo compõe cerca de 80 a 100% da dieta do lince, existindo pouca variação nestes valores, independentemente de variações geográficas, sazonais ou anuais. Este facto torna o lince um predador especialista. 

No entanto, o lince é igualmente um especialista em relação ao habitat. Entre a lista de variáveis ambientais estudadas, a eliminação da floresta e mata mediterrânicas foi o factor mais importante na explicação da catastrófica redução de distribuição deste felino entre 1960 e 1990. A mata mediterrânica inclui espécies como a azinheira Quercus rotundifolia, sobreiro Quercus suber  entre outras espécies do género Quercus, nas árvores, Phillyrea spp., Arbutus unedo, Pistacia lentiscus, e Viburnum tinus entre os arbustos, e Cistaceae, Erica spp., Rosmarinus spp., Rhamnus spp., entre outras plantas menores. Oliveira Olea europaea silvestris, pereira Pyrus silvestris, Juniperus spp., e outras espécies podem também ser encontradas.

Em Portugal, a maioria do potencial habitat do lince Ibérico foi entregue à silvicultura. Durante a segunda metade do século XX a floresta e mata originais foram substituídas por plantações de pinheiro bravo Pinus pinaster e eucalipto Eucalyptus globulus, usadas para a recolha de madeira e fabrico de pasta de papel. A camada arbustiva é virtualmente inexistente nos eucaliptais e é removida periodicamente nos pinheirais, tendo como consequência a ausência quase total de coelho bravo nesses locais, por falta de abrigo e alimento. Com a sua dependência do coelho para a alimentação, as populações de lince sofreram um enorme declínio em poucos anos. A situação piorou com a praga de mixomatose, que matou mais de 90% do efectivo de coelhos bravos e os deixou muito vulneráveis à caça excessiva.

Estas evidências permitem concluir que o declínio e, quase de certeza, extinção do lince Ibérico em Portugal podem ser directamente relacionadas com o abate da floresta e mato nativos e, simultaneamente, o aumento da monocultura de pinheiro bravo e/ou eucalipto com as sua associada perda de biodiversidade. Infelizmente, esta é apenas uma de muitas histórias tristes, muitas outras estão escondidas nestas plantações, ameaçando seriamente a vida selvagem de Portugal.

Hoje em dia, a tendência para a plantação indiscriminada de pinheiro bravo e eucalipto continua, estimulada pela errada aplicação de fundos associados a um programa europeu de reflorestamento, cujo objectivo é tirar partido do abandono de terrenos agrícolas para melhorar a qualidade ambiental e aumentar a biodiversidade. Este plano financia a conversão de velhos campos agrícolas em áreas florestais. 

No entanto, muitos matos mediterrânicos são classificados como terras improdutivas, sendo substituídos por novas plantações de pinheiro bravo ou outras espécies de crescimento rápido, como o eucalipto, espécies que não só não são a melhor escolha para recuperar a floresta mediterrânica, como ainda deterioram mais um solo já de si pobre em nutrientes. 

Enquanto alguns programas da União Europeia apontam para a implementação de medidas de conservação, muitas áreas de mato e floresta são destruídas simultaneamente por empreendimentos financiados por outros fundos comunitários, como estradas, barragens e projectos de irrigação. Os agentes privados vêm mais lucro na utilização da floresta e mata mediterrânicas para estâncias de golfe ou para a caça grossa, ou mesmo silvicultura. Não existem incentivos sociais ou económicos para preservar os habitats naturais.

Todos os Verões a floresta e o mato são destruídos por fogos, muitas vezes reflectindo interesses económicos relacionados com a silvicultura, criação de gado, caça e urbanização. Quando uma destas novas formas de utilização da terra não é autorizada, os seus donos geralmente plantam nas áreas ardidas pinheiro bravo ou eucalipto, argumentando que, com a taxa de regeneração da floresta natural, o perigo de erosão do solo e de inundações é grave. 

E eis-nos nesta encruzilhada: enquanto as cinzas dos incêndios deste Verão estão quentes, o governo já prometeu auxílio a quem pretende reflorestar as áreas ardidas, mas com o quê? 

Esta pode ser a altura ideal para implementar novas políticas, promovendo uma utilização sustentada do uso da terra, com plantações de sobreiro, castanheiros ou carvalhos, fornecedores de bens muito valiosos, como a cortiça, a castanha ou a madeira nobre. Deveria ser reduzida a agricultura de regadio, pouco adequada aos solos portugueses, essencialmente pobres em nutrientes e sujeitos a terrível erosão após poucos anos de colheitas. 

Promover o ecoturismo seria outra importante fonte de rendimento para as populações da zona, tirando partido da floresta de modo não invasivo. Uma pequena, mas crucial, contribuição pode ser dada por todos nós, exigindo mais unidades de reciclagem de papel e separando o lixo, usando menos derivados da madeira, o que reduziria a procura destes produtos e a necessidade de plantar mais árvores de crescimento rápido. 

Estas ideias não são novas, nem originais, mas talvez agora que o terreno foi, literalmente, desbravado pelos incêndios deste Verão, possam ser postas em prática. O nosso papel será o de garantir que o governo, proprietários de terras e silvicultores seguem o caminho certo nesta encruzilhada. 

 

* publicado em inglês no site da organização Greenpeace

** Bióloga e professora na Escola Secundária de Amora, Seixal

 

Para saber mais: Referências:
Ficha do lince ibérico         

IUCN Red List

Sistema de Informação do Património Ambiental 

Direcção-Geral das Florestas 

Action Plan for the conservation of Iberian Lynx in Europe

European Center for Nature Conservation    

Instituto de Conservação da Natureza 

Liga para a Protecção da Natureza 

Quercus 

Action Plan for the conservation of Iberian Lynx in Europe

Correia, Clara Pinto et al, Portugal Animal, Círculo de Leitores/Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991

Determinação das causas dos incêndios florestais em 2002

Direcção-Geral das Florestas

Iberian lynx threatened - W.W.F.

Instituto de Conservação da Natureza

Inventário Florestal Nacional

IUCN Red List - Lynx pardina

Pena, António et al, Roteiros da Natureza, Temas e Debates, Lisboa, 1996

Relatório Final sobre os incêndios florestais em 2002

Relatório Provisório sobre os incêndios florestais em 2003

Vários, Portugal Natural, Edideco, Lisboa, 1995

 

 

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